Como é de sabença geral, a tão falada “Operação Maré Vermelha” teve início em
19 de março do ano corrente, e, conforme informação publicada no sítio
eletrônico da Receita Federal, seu objetivo é “aumentar o rigor nas operações de
comércio exterior em razão do volume crescente de importações e o consequente
aumento do crescimento do comércio desleal, que inclui a prática de fraudes como
o subfaturamento, a triangulação e a utilização de falsa classificação fiscal
que resultam em situações predatórias ao setor produtivo nacional”[1].
Conforme já colocado por Raul Haidar, em artigo
publicado na
ConJur[2], a
ineficiência da Receita levará empresários à bancarrota, e “já há vários casos
de pequenas empresas de importação que estão suspendendo suas atividades ou
mesmo encerrando-as definitivamente”[3].
Fato é que a chamada “Operação Maré Vermelha” se trata de uma
retaliação
política a importadores, sem qualquer fundamento jurídico. É um “nada
jurídico”, vez que a restrição de direitos, como sabemos, só é legítima quando
única e exclusivamente criada por lei.
Ora, se a Receita não fiscalizou rigorosamente as operações de comércio
exterior antes de instaurar a referida operação, o cidadão-contribuinte nada
pode fazer, menos ainda arcar com a demora — e consequentemente prejuízos —
causada pelas
inéditas exigências realizadas nos
processos de importação.
Tudo fruto da malfadada operação.
É que no afã de querer encontrar fraudadores —do mesmo modo como as
autoridades policiais tentam “encontrar”
criminosos —, a Receita
Federal tem instaurado procedimentos especiais de fiscalização sem um único
indício de materialidade e autoria das suspeitas investigadas. É assim: a
fiscalização simplesmente espera meses para avaliar se os documentos de
importação estão de acordo com a legislação (checando pagamento de tributos,
classificação fiscal etc.) e, depois, instaura de chofre o referido procedimento
dizendo
qualquer coisa sobre qualquer coisa, acusando o
contribuinte.
Com o poder em mãos, e albergada pela (questionável) presunção de legalidade
e veracidade dos atos administrativos, a administração pública confortavelmente
vem alegando suspeitas de subfaturamento, interposição fraudulenta de terceiros,
falsidade material, etc., a qualquer caso de importação. Basta achar que tais
hipóteses existem que as autoridades fiscais se autorizam a reter as mercadorias
do contribuinte. E o efeito perverso dessa dura realidade é que em ações
judiciais do importador, mais especificamente no Mandado de Segurança, a
autoridade se vale outra vez da presunção
juris tantum de veracidade,
sendo vista como se imparcial fosse.
Mas não deve ser assim.
É que, seguindo o alerta
de Lenio Luiz Streck, “
não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa
e depois buscar a justificativa”[4]. É
isso que a Receita está fazendo.
Nesse cenário, a análise das informações prestadas em Mandado de Segurança, e
das acusações feitas em procedimentos de fiscalização, deve ser deveras
criteriosa, especialmente porque nessas situações (de importação) a Receita
Federal
enfatizou claramente seu interesse em obstar/dificultar as
operações de comércio exterior, sob o subterfúgio de estar em defesa do mercado
doméstico.
Como já consignado
na
ConJur, pelos advogados Alan Adualdo Peretti de Araujo e
Luiz Roberto Peroba Barbosa[5], o
juiz “deve sopesar parcialidade da autoridade coatora”, pois não raras vezes ela
apresenta informações “defendendo o ato coator como se parte fosse, o que é
prática ilegal e que fica ainda mais evidente quando é feita construção jurídica
e até mesmo distorção dos fatos, visando validar o ato objeto da impetração”[6].
Assim, embora louvável a tentativa da Receita de punir fraudadores, isso não
pode se materializar a qualquer custo, em violação aos direitos
fundamentais.
Nesse sentido, a aplicação do princípio da presunção de inocência do Direito
Penal é medida que se impõe, o qual,
mutatis mutandis, deve
preponderar sobre qualquer suspeita, notadamente quando o
contribuinte-importador (i) apresenta regularidade em suas importações
(histórico de atividade) e (ii) demonstra ter renda disponível para operar
(decorrente de empréstimos bancários ou não). Quanto mais se presume a inocência
do contribuinte se ele apresenta certidão negativa referente aos tributos
federais.
Aqui, na colisão de princípios, onde, de um lado, está o da
supremacia do
interesse público sobre o particular, e, de outro, o da
presunção de
inocência, prepondera-se o último, mesmo porque a atividade do importador,
ao fim e ao cabo, também é de interesse à coletividade, conquanto gerador de
empregos e rendas. Isso fica mais claro ainda quando a presunção de inocência é
fomentada por provas de que o contribuinte é importador habitual. Muito embora,
vale frisar, o ônus probatório é sempre de quem acusa, e não o inverso.
A solução pela preponderância da presunção de inocência não vem do acaso. É
que a Constituição Federal assegura ser a ordem econômica
fundada na
livre iniciativa, sujeita à observância do princípio da livre
concorrência e do direito à propriedade (art. 170, caput, e II e IV, da
CF/88).
Em síntese, a punição deve ser para os verdadeiros fraudadores, observado o
princípio do devido processo legal, obviamente. Isso é inquestionável. Jamais,
entretanto, a retenção de mercadorias deve se apresentar como
sanção
antecipada de uma
suspeita de que aquele contribuinte estaria
infringindo a Lei.
Já citado
por Raul Haidar, há precedentes famosos aplicáveis à situação em comento, em que
se consignou não ser razoável
“a aplicação da IN 228/02, haja visa a
necessidade da presença de indícios robustos e concretos, não bastando a
simples suspeita da autoridade fiscal, para se admitir a restrição da
atividade econômica da empresa, pela retenção de mercadoria necessária ao seu
funcionamento”[7]
.
Nunca se precisou tanto de precedentes como esses, em que acertadamente
transferem o ônus da prova ao Fisco, e repele acusações sem indícios robustos e
concretos da suspeita alegada.
A conclusão que se chega é de uma necessária cautela na análise de todo e
qualquer ato de retenção de mercadorias, e de uma releitura dos princípios que
dia-a-dia são usados contra nós mesmos, cidadãos-contribuintes.
[1]
http://www.receita.fazenda.gov.br/noticias/2012/mar/MareVermelha.htm Acesso em
20.06.12.
[2]
http://www.conjur.com.br/2012-abr-30/justica-tributaria-fim-eficiencia-receita-quebrar-
importadores Acesso em 20.06.12.
[4]
http://www.conjur.com.br/2012-abr-26/senso-incomum-prova-qualquer-tese-direito
Acesso em 20.06.12.
[5]
http://www.conjur.com.br/2011-jun-13/liminar-ms-observar-imparcialidade-autoridade-coatora
Acesso em 20.06.12.
[7] TRF-4, Processos
2003.04.01.026070-6 e
2003.04.01.018264-1.
http://www.conjur.com.br/2012-abr-30/justica-tributaria-fim-eficiencia-receita-quebrar-
importadores Acesso em 20.06.12.